O rato apareceu por baixo da porta,
caminhando rápido em passos tortos, ziguezagueando e farejando furtivamente, os
rastros deixados formavam semicírculos no assoalho. Parou próximo aos dedos da
mão direita, onde o corte foi menor! Com uma agilidade digna de um roedor,
arrancou um teco de carne...
Quando abriu os olhos a primeira imagem
que viu foi seu corpo estendido no chão, por um momento espantou-se ao perceber
que não sentia nada com a cena mórbida. Começou então, a recapitular todo
ocorrido.
Já havia planejado várias e várias vezes,
mas à covardia o impedia sempre... Porém, dessa vez não renunciaria. Preceitos,
religiosos e sociais não poderiam detê-lo. Sabia muito bem que era o certo a
fazer. Anos e anos de antidepressivos, dores contínuas, à completa tristeza que
sempre o perseguira, finalmente botaria um fim em tudo!
Com o corte profundo no braço esquerdo,
tentou em vão concluir o “homicídio” arremessando com o resto de forças
restante o punhal no outro braço, cortou a mão e caiu tonto, esperou sem
gritar, e nem ao menos grunhir, observou o sangue escorrer pelos cortes até o
frio e sono o vencer e adormeceu...
Ao acordar, o corpo estendido à sua
frente, descobriu que realmente existe algo no outro lado, não viu luz nem
túnel, absolutamente, nada! Apenas acordou e observou até a ultima gota esvair
do seu corpo, ao menos parecia última!
Tomado por uma felicidade incomum,
percebeu que estava livre! Livre para fazer o que quiser, um morto tem muitas
possibilidades, a primeira que lhe veio em mente, foi testar todas às
habilidades que só um fantasma era capaz! Por que não voar, teletransportar-se
para outra cidade...
Aterrorizar! Sim assustar, começou fazer uma lista rápida de inimigos e idiotas que sem duvida iriam pagar pelas suas injurias e desrespeito. O vizinho barulhento, a velha folgada do 206, à vagabunda da sua ex e o amante dela, seu chefe miserável e o cachorro da rua de traz... Mesmo morando no terceiro andar, o desgraçado do animal tem o dom de lhe acordar sempre às 4h, sempre às 4h!
Como um menino animado ao receber o seu
novo brinquedo, levantou com agilidade e destreza de um campeão, agora ninguém
o zombaria, ele era o campeão!
A primeira experiência seria sem dúvida
atravessar às paredes, à praticidade espiritual deve ser explorada com paixão e
determinação! Nenhum segredo será guardado, todas às portas abertas. Poderia frequentar
todos os ambientes onde sempre sonhou! Sem regras e limites!
Caminhou suavemente pelo piso
ensanguentado, fechou os olhos e partiu com um único impulso...
Bow! A dor foi mais forte do que os cortes
que por sinal ainda ardiam! Forte o bastante que o cegaram momentaneamente,
aturdido e confuso, tentou mais uma vez, com menos impulso! E descobriu que o
destino humano pode ser mais infeliz do que imaginava!
Realmente, dois corpos, não ocupam o mesmo
espaço, seja material ou espiritual! Já que não conseguia atravessar às
paredes, recorreu ao recurso mortal... Ao virar a maçaneta descobriu que sua
força não é suficiente nem para mover o ar e espantar uma mosca!
“Porra de pós-vida! Agora sou um fodido
que nem se quer posso fuçar a geladeira dos outros...”.
(Crimson)