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quarta-feira, 23 de maio de 2012

Contos de um Morto Mudo

Parte 1

O rato apareceu por baixo da porta, caminhando rápido em passos tortos, ziguezagueando e farejando furtivamente, os rastros deixados formavam semicírculos no assoalho. Parou próximo aos dedos da mão direita, onde o corte foi menor! Com uma agilidade digna de um roedor, arrancou um teco de carne...

Quando abriu os olhos a primeira imagem que viu foi seu corpo estendido no chão, por um momento espantou-se ao perceber que não sentia nada com a cena mórbida. Começou então, a recapitular todo ocorrido.

Já havia planejado várias e várias vezes, mas à covardia o impedia sempre... Porém, dessa vez não renunciaria. Preceitos, religiosos e sociais não poderiam detê-lo. Sabia muito bem que era o certo a fazer. Anos e anos de antidepressivos, dores contínuas, à completa tristeza que sempre o perseguira, finalmente botaria um fim em tudo!

Com o corte profundo no braço esquerdo, tentou em vão concluir o “homicídio” arremessando com o resto de forças restante o punhal no outro braço, cortou a mão e caiu tonto, esperou sem gritar, e nem ao menos grunhir, observou o sangue escorrer pelos cortes até o frio e sono o vencer e adormeceu...

Ao acordar, o corpo estendido à sua frente, descobriu que realmente existe algo no outro lado, não viu luz nem túnel, absolutamente, nada! Apenas acordou e observou até a ultima gota esvair do seu corpo, ao menos parecia última!

Tomado por uma felicidade incomum, percebeu que estava livre! Livre para fazer o que quiser, um morto tem muitas possibilidades, a primeira que lhe veio em mente, foi testar todas às habilidades que só um fantasma era capaz! Por que não voar, teletransportar-se para outra cidade...

Aterrorizar! Sim assustar, começou fazer uma lista rápida de inimigos e idiotas que sem duvida iriam pagar pelas suas injurias e desrespeito. O vizinho barulhento, a velha folgada do 206, à vagabunda da sua ex e o amante dela, seu chefe miserável e o cachorro da rua de traz... Mesmo morando no terceiro andar, o desgraçado do animal tem o dom de lhe acordar sempre às 4h, sempre às 4h!

Como um menino animado ao receber o seu novo brinquedo, levantou com agilidade e destreza de um campeão, agora ninguém o zombaria, ele era o campeão!

A primeira experiência seria sem dúvida atravessar às paredes, à praticidade espiritual deve ser explorada com paixão e determinação! Nenhum segredo será guardado, todas às portas abertas. Poderia frequentar todos os ambientes onde sempre sonhou! Sem regras e limites!

Caminhou suavemente pelo piso ensanguentado, fechou os olhos e partiu com um único impulso...

Bow! A dor foi mais forte do que os cortes que por sinal ainda ardiam! Forte o bastante que o cegaram momentaneamente, aturdido e confuso, tentou mais uma vez, com menos impulso! E descobriu que o destino humano pode ser mais infeliz do que imaginava!

Realmente, dois corpos, não ocupam o mesmo espaço, seja material ou espiritual! Já que não conseguia atravessar às paredes, recorreu ao recurso mortal... Ao virar a maçaneta descobriu que sua força não é suficiente nem para mover o ar e espantar uma mosca!

“Porra de pós-vida! Agora sou um fodido que nem se quer posso fuçar a geladeira dos outros...”.

(Crimson)